Vai ver foi o bem-te-vi da árvore aqui em frente, cantando nas horas menos bem-te-vianas que já tive notícia. Ou os braços direitos de doze feirantes martelando madrugada adentro, tabicando e aprumando suas barracas junto com outros três de braços esquerdos e mais cinco ambidestros como em toda quarta-feira que se preze, até na de Cinzas. Pode que fosse coisa do 737 e do E-190 seiquantos pés pra cima e a seiquantos quilômetros mais daqui rumo a São Paulo, “o senhor quer uma barrinha de cereal com suco de laranja e café aguado?”, sem falar no moço varrendo a calçada e em mais um nem tão moço lavando o carro, e nos micos, uma família inteira guinchando quero fruta, mas chega de banana, quero é kiwi, grapefruit, nêspera, carambola, umbu e cupuaçu, tem graviola?, e de novo o bem-te-vi agora pedindo calem a boca que eu quero dormir, tô exausto, cantei a madrugada inteira. Mas e se não for nenhum deles? E se justo essa grande sinfonia dodeca e cacofônica estiver noutra freguesia, noutro plano, noutra década? E se eu só fiz ou faço narrá-la, entre nostálgico e conformado com o destino de mais um dia, só que de sonhar nem parei ainda? E se na verdade a culpa for da dor de ouvido que começou ontem à tarde, seguiu suportável até Morfeu e o cansaço me fazerem dormir, e depois o cocuruto, o meu insondável cocuruto resolvesse me pregar uma peça, me fazer achar que acordei por conta dessa barulhada toda, mas na verdade ainda nas primeiras horas de sono fiquei surdo feito a dona Nena do 302 com seus noventa e um anos e que até dois mil e dezoito saía sozinha por esse mundão sem deus crente que ia voltar e hoje não sai mais porque morreu em dois mil e dezenove, que bom que foi antes da pandemia? Surdo feito porta, o que é estranho se pensarmos que porta nenhuma escutou na vida. Surdo feito um morto, que esse sim já foi vivo e se não nasceu surdo decerto escutou. Tão surdo, mas tão surdo que foi isso, o meu já disse que insondável cocuruto ficou com pena de mim e trouxe uma barafunda de lembranças dos sons que me acordaram nos últimos vinte e sete anos e assim tive a impressão de que foi só mais uma madrugada que virou manhã e com isso quase me atrasei pro primeiro paciente, droga, nada de pão na chapa, vai ser só o tempo de passar um café.
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dê-se por satisfeito que eram bem-te-vis, e não maritacas.