É com você
Um conto
Já teve a sensação de algo começar a escapar dos seus dedos, sei lá, feito duas pessoas conversando animadamente na cabine de um trem que, do nada, percebem não estar de fato sentadas na mesma cabine e sim em duas, lado a lado, cada uma em um trem diferente que de tão perto pareciam um só, dois trens que no começo seguiam por trilhos paralelos e assim dava para continuar conversando pela janela, até que um dos trilhos decide não ser mais paralelo e o outro trem se vê obrigado a fazer uma curva, de início quase imperceptível de tão suave, mas que aos poucos deixa tudo cada vez mais longe, algo que as duas pessoas só notaram ao precisar levantar a voz, depois a gritar de se esgoelar até ninguém mais conseguir se ouvir, os caminhos deixarem de ser os mesmos e a distância se instalar, imensa, ainda que a gente, ou em todo caso eu, não quisesse?
Sei que nós dois falávamos a mesma língua, entendíamos o que dizíamos um ao outro, e dizíamos muito, fosse bobagem ou a resolução das mazelas do mundo. Era assim, até que de uma hora para outra você começou a falar num idioma diferente, embora eu ainda entendesse tudo o que você dizia porque era tudo parecido ao que você dizia antes ou, vá lá, quase tudo, mas o fato é que essa história de parecer outro idioma dificultou um pouco as coisas, como se fossem pessoas que só falassem português e de repente uma delas passasse a dizer tudo em espanhol, mas espanhol com sotaque madrilenho, aquele com um ovo na boca, carregado, duro, ou então portenho, cheio de jotas, quando não xis, ou então em catalão, que a gente que não domina a língua se confunde e até acredita que entende muito, mas não passa de impressão. E o que até então costumava ser transparente para os dois começa a ter partes sombreadas, algumas, e com o tempo o escuro aumenta a ponto de parecer um daqueles documentos secretos liberados pelos governos depois das tantas décadas regulamentares e dos quais a gente pensa que vai entender quando for ler, mas no máximo conseguirá supor.
E se não bastasse, volta e meia eu te via por perto, acenava, mas parece que você não me via direito, ou então estava ocupado conversando com outra pessoa e, claro, seria indelicado interromper o papo de vocês para poder dizer oi e depois não me incluir na conversa onde o assunto ainda por cima parecia importante, diga-se de passagem. Até o dia em que você pareceu não me reconhecer mais e eu também fiquei com vergonha de me aproximar e dizer olá! Como vai? Eu vou indo. E você, tudo bem?, e esperar te ver sorrir com essa referência musical, porque pelo menos musical eu sei que você não deixou de ser. Ou deixou?
Tenho tido dificuldade de aceitar tudo isso. Aceitar não, de entender, porque mesmo quando não se aceita alguma coisa a gente acaba que se acostuma, a vida acostuma a gente. Mas não entender é não entender, sem meio termo, não é? E entre nós, a meu ver, isso tudo continua a não fazer muito sentido, é como se não combinasse. Se bem que... bom, reconheço que sou um distraído acima da média e vai ver que o tempo passou na janela e só Carolina e eu não vimos, apenas para seguir nas chicobuarquices, e você bem pode ter deixado um monte de sinais espalhados por aí, eu é que não me dei conta.
Sinais fechados?



Algumas linhas deixam de existir...
há caminhos que se bifurcam e não se encontram nunca mais…