Abriu os olhos devagar, recolhendo as pálpebras numa delicadeza só. Quase um gato angorá, só faltava ronronar. E o jeito de se espreguiçar? Pareceu coisa de método Stanislavski ou exercício de terapia corporal, primeira vez daquele jeito. A vida toda pulara da cama de supetão, na pressa de pagar alguma dívida com o mundo, como se não existisse o lusco-fusco do amanhecer e a noite virasse dia feito aqueles desenhos animados onde o sol acende do nada, que nem aquelas antigas lâmpadas incandescentes de duzentos watts que eram tão difíceis de achar nas elétricas do bairro de Benfica. E que banho, que banho! Um tal de cantar alto, rir sozinho, fez questão de usar uma das buchas que a mulher costumava comprar na feira e ele sempre deixara mofar no chuveiro. Lavou atrás das orelhas, quase sempre um sebo só, e deixou o condicionador no cabelo o tempo recomendado no rótulo, ele que nem paciência tinha de usar — deixa pra lá, vai cair mesmo, achava. Foi de cotonete até no umbigo, enxugando-se com um capricho danado, admitindo estar mais do que na hora das costas e dos dedos dos pés verem toalha, nem que fosse pela última vez.
Pequenas mudanças, na hora ninguém estranhou. Ao calçar os sapatos, amarrou o cadarço do pé esquerdo antes do habitual direito. Disse à mãe que a amava e apertou-lhe carinhosamente as bochechas, moleque que só, seguido de um selinho em Valdomira, a esposa, beliscando-lhe a bunda e ouvindo um para com isso! dengoso. Até comentaram dele ter cumprimentado a vizinha do cento e dois (a jararaca), de quem sempre se queixara, e de dar os parabéns ao porteiro pela vitória do seu desafeto Vasco da Gama. De estranhar mesmo, só dele não ligar da dona Ermínia boliná-lo de novo na van, coisa que sempre o deixara consideravelmente puto, nem do motorista passar outra vez do seu ponto e parar dois adiante, ali na Candelária, bem em frente ao Centro Cultural.
Mas não foi tudo, nem de longe. Vê-lo entrar na antiga Catedral, fazer o sinal da cruz e rezar, contrito, ele que jurara não querer papo com religião depois da morte da irmã caçula, leucemia aos nove, sofreu muito a pobre, isso sim foi de assustar. Ao sair foi num pulo à Rua da Alfândega bater o ponto do meio expediente que dava no escritório de contabilidade. Passou antes numa loja de roupas e saiu de lá com uma sunga nova, devidamente guardada na pasta a tiracolo. E o que dizer do tamanho prazer de trabalhar, afinco incomum que contaminou seus pares com uma joie de vivre jamais vista nos anais daquela firma onde funcionário algum aguentava trabalhar mais do que nove meses sem parir uma úlcera? Qualquer observador marejaria ao perceber aquelas paredes branco-gelo, camadas sobre camadas inchando rodapés, depressões, rancores e indiferença, obrigadas a capitular de uma hora para a outra diante de tantos assovios, sorrisos e tapinhas nas costas dele, sem quê nem para quê. Aliás, de um desses quês os colegas de escritório sabiam sim. É que dele viera o antídoto, a anti-cizânia, daí as palmas merecidas. Mas não parou por ali. Ao sair do já saudoso ambiente-família que se instalara na firma, seguiu para o consultório do doutor Ivo, o resultado do check-up anual lhe esperava. E no meio do caminho deu de olhar para o céu e sorrir, algo que só lembrava de ter feito ainda criança, ensopado de chuva vendo o seu primeiro arco-íris, um dos poucos banhos que tomou sem a censura da mãe, com medo dele gripar. O sorriso radiante em pleno Largo da Carioca foi tanto que contagiou a todos os que por ele passaram em seu caminho rumo ao número treze da Praça Tiradentes.
Pronto, chegou ao consultório. O doutor Ivo não estava, mas a secretária resolveu entregar-lhe os resultados do check-up assim mesmo. Abriu o envelope e leu bem devagar, quase uma palavra por degrau dos três lances de escada que faltavam até a portaria do prédio. Dobrou o laudo, pôs no envelope e guardou na pasta a tiracolo. Sorriu de novo. Não mais para o céu, aos pedestres ou à Valdomira. Sorriu para si, da lembrança dos seus seis, sete anos, o pai contando-lhe que um dia o sol vai crescer tanto, mas tanto, que acabará engolindo a Terra e todos os planetas vizinhos, e que nesse dia, que durará bem mais que um dia, ele brilhará como nunca, num tom vermelho, lindíssimo, uma pena não sobrar viva alma para ver aquela maravilha. Pensou nisso a caminho de casa, e de novo enquanto escrevia as duas cartas que deixou na cozinha, embaixo da garrafa térmica. “O que deu em você pra escrever tanto?”. “Nada não, benzinho, bora dormir que amanhã vou madrugar”, seguido de mais uma lembrança, a última antes de cair no sono, do que disse ao pai depois daquela história: “Quer dizer que sol tem epílogo?”
[Este conto foi escrito faz tempo, nos idos de 2008. Lembrei dele hoje, nem vinte e quatro horas depois de saber que um amigo, verdadeiro gentleman, a delicadeza em pessoa, resolveu sair de cena anteontem, 14 de abril de 2025, não sem antes preparar tudo, meticulosamente, com a discrição e a classe que todos viam nele. É por essa lembrança que republico esse conto, meu querido amigo. Porque sol tem epílogo, Claudio, e deu uma tristeza danada saber do teu.]
Rico, que delicadeza você lembrar desse conto tão lindo para homenagear nosso Claudim. Perfeito. Obrigada
um abraço ♥