O escritor mexicano David Toscana já teve quatro dos seus livros publicados por estas bandas. Vencedor do Prêmio Bienal de Romance Mario Vargas Llosa 2023 por seu último livro, “El peso de vivir en la tierra” (2022), esse da foto acima que pretendo começar a ler logo, sei dizer que gostei do primeiro dos seus livros vertidos ao português, "O Último Leitor" (1a. edição em 2005, mesmo ano da versão em português), bem mais do que dos outros dois que li dele — o anterior "Santa Maria do Circo" (1998, em português saiu em 2006) e o posterior "O Exército Iluminado" (2006, vertido ao português no mesmo ano). (O quarto deles, “As pontes de Königsberg”, de 2012, escapou da minha órbita. Quem sabe eu o leia em algum momento.)
Não vou me alongar em resenhas, isso certamente já foi feito por gente que entende mais do riscado. Quero apenas destacar uma passagem (um pouco longa) que me chamou a atenção — entre tantas — justo pela forma como um dos personagens questiona como os escritores descrevem a realidade (equivocadamente, aos seus olhos) — no caso, a realidade em torno da proximidade da morte. Trata-se, é claro, de uma provocação do autor através desse personagem, mas que não fica apenas nisso. Melhor então transcrever logo o diálogo entre Lucio e seu filho Remigio, depois que este último mata um bode da forma como o pai orienta — segurando-o pela nuca, de frente para ele (o bicho apoiado sobre as patas traseiras, de forma a olhá-lo "direto nos olhos"), enfiando o facão no seu esterno. Aí vai:
(...) Faça o facão girar, ordena Lucio; o animal deve estar consciente de que é você quem o está ferindo. Remigio não vê a ferida por estar com os olhos nos de sua vítima (...). Torce o facão um pouco mais e as pálpebras do bode se entrefecham, o rosto em conjunto começa a adquirir uma expressão que Remigio não consegue precisar, mas que o intriga. O bode acaba por fechar os olhos apesar de ainda lhe restar vida. Continuo? Dá na mesma, responde Lucio, você já viu o que devia ver.
(...) Você viu horror e olhos abertos como pratos? [Em alusão ao jeito que um escritor de nome Santín descreve a morte de alguém.] Não, nada disso. E você sabe por que o bode é o animal ideal para sacrifícios? Diante do silêncio de Remigio, Lucio responde. Porque morre como o homem, só que mais dignamente, porque o bode não pensa nos seus planos de vida, projetos inconclusos nem na mãe nem nos filhos nem numa mulher chamada Evangelina; por isso é dócil, e se dá coices é por reflexo, não quer te machucar. Os padres não falam de galinhas expiatórias porque estas correm mesmo sem cabeça; nem de cachorros, porque eles dão mordidas. Claro, o homem tenta se defender, fica horrorizado e tudo isso que dizem os escritores, mas antes do final fica igual a um bode, já não sente terror mais outra coisa, você notou? Remigio tenta decifrar a expressão do bode, vira para ver o animal trêmulo, que, num ato de mansidão, caminhou até pousar sobre o recipiente para esvaziar ali seu sangue. Vergonha, diz, acho que sente vergonha. Lucio sorri com gosto. Exato (...). Eu lhe garanto que uma mulher moribunda, com um balaço no peito, certa de estar perdida, sente vergonha, do mesmo modo que se aparecesse nua numa praça pública ou se a espiassem no banheiro; e se lhe derem tempo pensará na roupa que lhe vão pôr para enterrá-la. Nos romances com assassinatos não tem nada disso, só violência, sangue e, principalmente, horror, com todos os sinônimos, que são muitos; às vezes há raiva, insultos ou lágrimas, mas nunca vergonha. A senhora Urdaneta é picada por uma cobra enquanto se alivia num descampado. O que vai fazer com suas últimas forças? Não sei, responde Remigio, suponho que vai esticar a anágua que estava enrolada na cintura. Correto, diz Lucio, e, se estiver com papel na mão, primeiro vai se limpar; o negócio não é tentar sobreviver, mas tornar decorosas as condições em que se morre (…). (Grifos meus).
Nunca tinha pensado nisso. Nunca. Até ler esse trecho e lembrar de ter visto, anos atrás, alguém envergonhado, desconcertadamente envergonhado poucas horas antes de morrer.
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P.S. Ponho aqui o link para uma ótima entrevista com o escritor onde fala um pouco do seu último romance, esse que já já vou começar a ler, e sua referência a escritores russos, muitos sendo personagens do livro.
não era o bode quem deveria sentir vergonha...