Prestei uma atenção danada quando o pai de uma amiga contou sobre sua temporada nos confins da Amazônia, vivendo no meio do mato, e de um hábito que desenvolveu à época por lá, nos também distantes anos setenta. Me disse que sempre que comia, qualquer das refeições que fosse, dava um jeito de guardar uma parte dela. E que a aquisição desse hábito obedecera a um princípio: sua relação com o amanhã era tão importante quanto viver o hoje; ou seja, que tratava de ser previdente. Creio que eu era criança quando ouvi essa história, então não lembro se naquela época eu sabia o que significava a palavra previdente, mas devo ter entendido pelo conjunto da história.
Passados muitos anos, muitos mesmo, e tendo esbarrado no tanto de gente com projetos bem avançados deixados de lado, tarefas interrompidas já quase no fim, adiamentos sem justificativas muito consistentes daquilo que estavam prestes a concretizar, outras duas lembranças bateram à porta. A primeira: ter ouvido, não mais do pai da minha amiga, a confissão de alguém que não gostava muito de terminar nada, nem de comer um doce, nem de acabar um livro, ou melhor, que adiava ao máximo o término de tudo, simplesmente porque gostava de acordar no dia seguinte (ou às vezes no semestre seguinte) sabendo que teria com o que se deleitar, fora o prazer de ver os olhares de fome e inveja dos que conviviam com ela e haviam devorado seus próprios doces e livros no dia anterior. E a segunda, menos anedótica, de também ter escutado de outra pessoa sobre seu costume de deixar tudo ou quase tudo inacabado, pois dessa maneira teria uma espécie de garantia de que estaria vivo amanhã, considerando que só a vida é a possibilidade de novas possibilidades, portanto só aos vivos cabe terminar tarefas, obras e sobras de comida na geladeira — desde que não sejam cérebros, porque estes estão reservados aos mortos-vivos, nem precisa etiquetar o Tupperware®.
Bestagens minhas à parte, cá entre nós, sem desmerecer os (nem desacreditar dos) motivos de cada um pra parar seus trens faltando quase nada pra chegarem na estação ali na frente, o que não foi dito por nenhum desses que lembrei, mas que suspeito que esteja na entrelinhas de suas frases e em letras bem miúdas, é a morte, ou melhor, a angústia frente a morte — sim, essa danada. Se preocupe não, nem vou tentar heideggeranear sobre o assunto, porque este meu substacanto não é pra isso e nem sou lá muito versado a respeito. Mas do pouco que pensei em acrescentar sobre o tema é que alguns dos vivos até fazem graça dele — al, muerto, la sepultura; al vivo, la travesura —, reservando-lhe pelo menos um dia do ano para homenageá-lo e pranteá-lo, enquanto outros se lançam de precipícios, mergulham na Fossa das Marianas ou escalam os Everestes da vida achando que enfrentar a morte é uma forma de "vencê-la" ou, imagine só, de "matá-la"; e tem também aqueles que se trancam em casa — sem perceber (ou talvez até percebendo) que morrem um pouquinho todos os dias tentando economizar a vida —, assim como há os que, com medo dela, fogem para Teerã. Id est, é gente que não acaba mais, suspeito que uns oito bilhões se virando pra lidar com a questão, cada um à sua maneira. Mas o que me importa hoje, em meio a essas lembranças tolas todas, é que há entre eles os que fazem poesia, ao gosto de tantos que raramente são eu, mas que eventualmente gosto feito Currículum, do não mais por aqui Mario Benedetti, cuja versão musicada por Juan Manuel Serrat assim termina (e este texto também):
Y cuando nada falta
Entonces usted muere
El cuento es muy sencillo
a gente cria um milhão de teorias, mas nunca chega num consenso sobre como lidar com a morte.